Jangada Brasil – outubro 2001 – nº 38 – Cancioneiro: Apontamentos sobre os pão por Deus
APONTAMENTOS SOBRE OS “PÃO-POR-DEUS” |
O que se vai ler são alguns apontamentos, apenas.
É uma simples achega a um interessante assunto, realizado por quem não possui engenho e arte. O “Pão-por-Deus” já foi estudado por dois ilustres membros da nossa comissão de folclore e incansáveis estudiosos das coisas catarinenses: os doutores Oswaldo Rodrigues Cabral (v. Boletim, nº 2, p.26: “A respeito dos corações e do “pão-por-Deus”) e Henrique da Silva Fontes (v. Boletim, nº 11, p.16: “Corações e pão-por-Deus”). A ORIGEM É indiscutível a origem lusa dos “pão-por-Deus”. E, hoje tendo em vista os resultados apresentados pelo inquérito realizado por esta Comissão, com a valiosa e imprescindível colaboração do professorado catarinense, podemos afirmar, pela área de sua maior incidência, no nosso Estado, que é a de colonização lusitana. A ÁREA O “pão-por-Deus” é encontrado em todo o litoral catarinense desde São Francisco do Sul até Araranguá. A sua penetração no interior é pequena. Assinala-se, entretanto a sua persistência nos mais longínquos rincões da terra catarinense, como seja Dionísio Cerqueira, nas lindes com a República Argentina. O processo de disseminação, abrange vários pontos dos Estado e, às vezes, incrustada no centro de uma região da colonização alemã ou italiana vamos encontrar uma população onde permanece o costume do “pão-por-Deus”: trata-se de gente de origem lusa. OS TIPOS Os “pão-por-Deus” são pedidos, formulados em versos, escritos em corações, recortados no papel. Podem, também ser desenhados ou fechados. O primeiro tipo, mais difundido, já serviu de base aos estudos dos já citados membros desta Comissão de Folclore. O segundo tipo é menos conhecido. Deles temos visto alguns exemplares e mesmo coletado em Biguaçu, Florianópolis e Tijucas, no litoral, e no planalto, em Curitibanos. Em geral, são assim: Num papel dobrado, apresenta-se uma chave desenhada, acompanhada da seguinte quadrinha: “Pega esta chave, Abre-se a dobra e depara-se com um coração, também desenhado a cores, e, ao seu pé, lê-se: “Vê como está, E, desdobrando-se mais, tem-se diante dos olhos este “pão-por-Deus”: “Meu coração disse, Em Florianópolis, recolhemos, pessoalmente, um desenhado, cuja fachada estampava um coração, onde se lia: “O coração vai saudoso Aparece, então, a viola e esta quadrinha: “Esta viola aqui Aparece a sereia e outros versos: “Sereia canta ansiosa, E, o último desdobramento apresenta esta outra: “Sereia canta ansiosa O TEMPO DA DISTRIBUIÇÃO O tempo da distribuição do “pão-por-Deus” é, por excelência, a primavera: de setembro a novembro (Finados). Entretanto, como toda regra tem exceção, anotamos em Canudos (município de Biguaçu) a sua distribuição alcançando o mês de dezembro, em Dionísio Cerqueira (sede do município de igual nome) prolongando-se até o Ano Novo, e, excepcionalmente, em Barro Vermelho (distrito de Maracajá, município de Araranguá) sendo feita até o mês de fevereiro. A época de distribuição do “pão-por-Deus” é, por excelência, a primavera, coincide com o florir do ipê, o que dá motivos, em Araranguá, que digam, ao verem a árvore florida: “- Pão-por-Deus!” Ao que o circunstante responde: “- Pau nas costas! VERSOS Os “pão-por-Deus” são feitos em versos e exprimem um pedido. Vejamos, pois, alguns versos, mais comumente usados e as suas variantes: O maior número de variantes se apresentam encabeçadas pela expressão: “Lá vai meu coração”. Vejamos, pois, alguns versos deste tipo: “Lá vai meu coração (Bernadete Costa, Armação da Piedade, Ganchos, Biguaçu e Hilda S. da Silva, Costeira da Armação, Biguaçu e Jandira N. da Rocha, Ganhos de Fora. Biguaçu). A variante que se segue, apresenta-se mais substanciosa: “Lá vai meu coração (Jovelina L. Amorim, Rio Negro, Aratanguá). Outro: “Lá vai meu coração (Tibúrcia da Silva, Areias, Guaporanga, Biguaçu). As rimas podem ser apresentadas, assim, na 2ª e na 4ª linhas do verso: “……………………………. (Demerval I. Rocha, Costa da Lagoa, Sombrio). Ou esta: “Lá vai meu coração (Virginia G. Cardoso, Três Riachos, Biguaçu). Pode-se, encontrar, também, uma variação que fale em “subindo morro e serras”, o que é comum. Ou, ainda, esta: “Lá vai meu coração (Jandira de Amorim, Encruzilhada, Biguaçu e Erta S. Caire, Santa Cruz, Biguaçu). Desta, temos a variante seguinte: “Lá vai meu coração (Carmelita de Souza Cardoso, Ilhas, Maracajá, Araranguá). Pode ser que vá “enfeitadinho de flor” pedir “a quem tenho tanto amor” (Brasilício João de Andrade, rua Velha, Biguaçu). E, dentro da era da velocidade: Lá vai meu coração (Osmarina L. Silva, Cabeceira dos Três Riachos. Biguaçu). Entretanto, na 2ª linha, apresentam-se variantes, numa multiplicidade deveras atraente: ora é “na asa de uma andorinha” pedindo “à minha querida madrinha” ou “nem que seja uma sobrinha”…., ora “nas asas de uma marreca” pedindo “uma boneca”, ora, ainda, “nas asas de um beija-flor” pedir “a quem tenho tanto amor” ou “nas asas de um besouro” pedir “uma correntinha de ouro”. Outro faz o pedido, assim: “Lá vai meu coração, (Jandira N. da Rocha, Ganchos de Fora, Biguaçu). E, este outro: “Lá vai o meu coração (Hilda S. da Silva, Costeira da Armação, Biguaçu). Ainda, a mesma informante, nos dá mais estas variantes: “Lá vai meu coração “Lá vai o meu coração, E, ainda, uma outra: “Lá vai esta toalhinha Ainda, variando os motivos ornamentais do verso, temos do mesmo informante (Lindonor L. da Costa, Rio dos Porcos, Maracajá, Araranguá). “Ai vai meu coração “Aqui vai meu coração “Lá vai minha cartinha Na mesma localidade, o ante-penúltimo e o penúltimo versos apresentam as variantes seguintes (Atalir P. da Rocha). “Ai vai meu coração “Aqui vai meu coração Já o último tem, também, variante, encontrada em Pontão. Sombrio: “Lá vai este bilhete Entretanto, este verso se apresenta, também assim “Aí vai este bilhete (Leopoldina M. da Silva, Costa do Rio, Mampituba, Passo do Sertão, Sombrio). Ao passarinho do verso pode ser um “bem-te-vi” e a rima, na 4ª linha se faz com a frase “Já que lá não posso ir”, ou, então, é um “beija-flor” e o pedido é “para o meu querido amor” (Edite Santos Gomes, Sanga da Toca, Araranguá). Mas, no amor, ele – o pão-por-Deus – decide ou espera decidir os embates. Daí: “Lá vai meu coração (Maria Teixeira Bernardo, Serraria, Içara, Criciúma). Apresenta-se, também, outra forma: “Lá vai meu coração (Rita dos Santos Borges, Ausentes, Içara, Criciúma e Ana Rosa de Jesus, Lombas, Içara, Criciúma). Uma variante encontramos deste verso, nas 2ª e 4ª linhas: “……………………… (Dorly B. da Silva, São Rafael, Içara, Criciúma). E, com igual começo, ainda, anotamos mais os seguintes versos: “Lá vai meu coração (Lucinda V. Frigo, Vila Operária, Criciúma). “Lá vai meu coração (Isabel L. Rosa, Vila Nova, Içara, Criciúma). “Lá vai meu coração (Carmela M. Milanezzi, Morro da Cruz, Criciúma). E, um, cheio de saudade: Vejamos, agora, outro motivo usado: “Não peço por pedir. (Bernadete Costa. Armação da Piedade, Ganchos, Biguaçu). Ainda tratando de “pedidos”: “O pedir é vergonhoso (Jandira F. de Amorim, Encruzilhada, Biguaçu e Erta da Silva Caire, Santa Cruz, Biguaçu). Deste verso temos uma variante, cuja modificação, está, unicamente, na terceira linha: “Mando-te pedir pão-por-Deus” (Edite Santos Gomes, Sanga da Toca, Araranguá). Ou, então: “Eu te peço um pão-por-Deus (Lindonor L. da Costa, Rio dos Porcos, Maracajá, Araranguá e Atalir P. da Rocha, na mesma localidade). Deste último verso apresenta-se esta variante: “Se peço um pão-por-Deus (Lucinda V. Frigo, Vila Operária, Criciúma). Ou, então, temos este tipo de versos: “As palmas de tuas mãos (Tibúrcia B. da Silva, Areias, Guaporanga, Biguaçu e José Santos Maciel, Sombrio). Encontramos esta variante da segunda linha do verso: “…São feitas deliciosas” (Alaíde L. de Amorim, Rio Farias, Antônio Carlos, Biguaçu). Ou esta, para a primeira e a segunda linhas: “Tens a palma da tua mão (Jovelina L. Amorim, Rio Negro, Araranguá). Quanto aos predicados físicos, entre outros, pela constância do uso, destaca-se este: “És bonito, és simpático, (Maria de Lourdes Faria, Limeira. Biguaçu). Ou, então: “És bonito, estimado, (Lindonor L. da Costa, Rio dos Porcos, Maracajá, Araranguá). Deste verso há uma pequena variante, na primeira linha. “és bonito, és formoso” (Ana Rosa de Jesus, Lombas, Içara, Criciúma). O verso, acima transcrito, apresenta uma mudança de gênero, de acordo com a pessoa que vai receber o pedido. E, ainda, varia-se, assim: “…………………………. (Lucinda V. Frigo, Vila Operária, Criciúma). Ainda, com relação aos predicados físicos: “Cabelos de ouro fino, (Jandira N. da Rocha, Ganchos de Fora, Biguaçu). “Minha flor, minha bonina, (Lindonor L. da Costa, Rio dos Porcos, Maracajá, Araranguá). “És o mimo do Brasil (Atalir P. Rocha. Rio dos Porcos, Maracajá, Araranguá). Deste verso há esta variante (Costeira da Armação, Biguaçu). “És o mimo do Brasil, Ou, então: “És bonito como o sol (Maria das Dores Langhammer, Santa Catarina, Biguaçu). E, ainda: “És bonito como um cravo (Ana Rosa de Jesus, Lombas, Içara, Criciúma). Ainda, na mesma sequência dos atributos físicos anotado em Espigão da Pedra, Maracajá, Araranguá: “Pequenino, engraçadinho, Deste verso há variante, onde só se processa a mudança de gênero. Ou, ainda, esta variação: “És pequeno, engraçadinho (Leopoldina M. da Silva, Costa do Rio Mampituba, Passo do Sertão, Sombrio). Ou, então, este: “Eu bem sei que sou pequeno (Maria Paula Rodrigues, Cachoeira, Guaporanga, Biguaçu). E, arrematando este tópico: “És tão bonitinho, (Nelson João de Pinho, Alsácia, Brusque). “Os anjos pedem para os santos (Zuê Rabello, Araranguá). Com o princípio idêntico (as duas primeiras linhas) encontramos este: “Também peço que me mande (Hilda S. da Silva, Costeira da Armação, Ganchos, Biguaçu). As variações deste verso são múltiplas, principalmente, tendo em vista que, na terceira linha, mudam-se as designações, como: “Eu peço para a minha madrinha”, ou, então: “Peço para o meu padrinho”. Neste verso a alteração se dá, também, de outras formas, e, tanto assim, que um informante de Santa Rosa, Sombrio, escreveu: “Eu peço ao dr. Oswaldo Cabral Ou, então, a variação pode se dar na primeira linha, modificando-se, consequentemente, a terceira: “Os justos pedem aos santos (José Santos Maciel, Sombrio). E, dentro desta técnica se oferece um bom número de variantes como esta, anotada em Santa Rosa, Sombrio: “Se os anjos do céu gozassem Ou, ainda, são os pão-por-Deus reflexos dos sentimentos amorosos, dos apaixonados: “Sei que me és ingrata (Maura da Luz, Rio Farias, Antônio Carlos, Biguaçu). E este: “Meu coração vai pedindo, (Basilício J. Andrade, Rua Velha, Biguaçu). Ou então, este: “Adeus, encanto da hora, (Dorly B. da Silva, São Rafael, Içara, Criciúma). E, mais este: “Por uma banda, cravo e rosa, (Ana Rosa de Jesus, Lombas, Içara, Criciúma). Por último, ainda, este: “Meu coração vai fechado (Adélia P. Dal Toé, Morro Albino, Içara, Criciúma). E quanto às condições das pessoas: “Por ser pessoa tão nobre, (Hilda S. da Silva, Costeira da Armação, Guaporanga, Biguaçu). E, quanto ao modo de pedir: “Não te peço pessoalmente, (Atalir P. Rocha, Rio dos Porcos, Maracajá, Araranguá). Ou este, anotado em Espigão da Pedra, Maracajá, Araranguá: “Por ser a primeira vez Outro assunto que apresenta bom número de pequeninas variações é este verso, cujo modelo mais usual reproduzimos: “Eu moro longe em distância, (Lindonor L. da Costa e Atalir P. Rocha, ambos de Rio dos Porcos, Maracajá, Araranguá). E, encerrando; alinhamos ainda, estes versos: “Folha de malva maça, (Alzira de Souza, Palmas, Ganchos, Biguaçu). “Meu coração pequenino (Atalir P. da Rocha, Rio dos Porcos, Maracajá, Araranguá). OS PRESENTES Quem recebe essa demonstração de amizade, expressa pelo “pão-por-Deus”, fica na obrigação de retribuir com um presente, cujo valor não é limitado. Nos Ganches, município de Biguaçu, são os presentes, comumente, corações de massa de trigo, dados aqueles que pedem “pão-por-Deus”. É entretanto, necessário frisar que há uma certa obrigatoriedade no atendimento do pedido de pão-por-Deus, sob pena de Divino Castigo, visto não se dever negar aquilo que é solicitado em nome de Deus, como afirma o povo. E finalizando esta desataviada arenga, aos meus amigos, digo: “O prazo já está chegado, (Piazza, Valter F. Em Boletim catarinense de folclore, ano VI, nº 22, Florianópolis, janeiro de 1956) |